Freddy Goldberg Eliaschewitz; Denise Reis Franco; Thiago Rennó Mares-GuiaI; Irene L. Noronha; Leticia Labriola; Mari Cleide Sogayar.
INTRODUÇÃO
O diabetes melito tipo 1 (DM1) é o resultado da destruição autoimune das células-beta pancreáticas, responsáveis pela produção da insulina. Ao longo da história representou uma condição clínica fatal que, com o advento da terapia com insulina exógena, há cerca de 80 anos, se transformou em doença crônica. Até hoje, a insulinoterapia constitui o principal pilar do tratamento destes pacientes (1) .
O Diabetic Control and Complication Trial (DCCT) (2) demonstrou, de modo inequívoco, que o controle estrito da glicemia é importante para evitar ou retardar as complicações microvasculares, razão pela qual a insulinoterapia deve ser utilizada na sua modalidade intensiva, ou seja, a insulina basal (uma ou mais aplicações diárias) associada à insulina de ação rápida antes das refeições, em doses variáveis de acordo com o conteúdo de carboidratos a serem ingeridos e com o resultado da monitorização dos níveis da glicemia. Novas estratégias para obter um perfil farmacocinético mais fisiológico da insulina administrada com o uso dos análogos da insulina, das insulinas inaláveis e das bombas de infusão contínua têm se tornado disponíveis na última década como alternativas para atingir as metas de controle glicêmico. No entanto, apesar desta evolução significativa da insulinoterapia, há pequeno contingente de pacientes (em torno de 5% a 10%) que apresenta flutuações intensas e inesperadas das suas glicemias, resultando múltiplos episódios de hipoglicemia, freqüentemente assintomáticos. Para estes pacientes, o transplante de pâncreas é a alternativa que já está em uso clínico e o transplante de ilhotas (Tx de ilhotas) é a alternativa em desenvolvimento (1).
O racional para o desenvolvimento do Tx de ilhotas é que estas representam apenas 1% a 2% da massa celular do pâncreas, sendo todo o restante do órgão representado por tecido não-endócrino, desnecessário para o paciente com DM1.
A EVOLUÇÃO DO TRANSPLANTE DE ILHOTAS
A primeira tentativa de transplantar ilhotas, ainda que de maneira rudimentar, ocorreu em 1894, portanto, antes que a insulina fosse isolada por Banting, Best e Collip em 1921. Naquela época já se sabia que extratos de pâncreas continham algum elemento capaz de diminuir a glicemia e o Dr. W. Williams tentou implantar pequenos fragmentos de pâncreas ovino no subcutâneo de um rapaz de 15 anos em cetoacidose. Naquela época, os imunossupressores e as conseqüências de um xenotransplante eram completamente desconhecidos e o enxerto foi prontamente rejeitado (1). A história moderna do Tx de ilhotas se inicia bem mais tarde, em 1972, quando P. Lacey conseguiu, pela primeira vez, reverter o diabetes em roedores com um implante de ilhotas (1). Não obstante grande repercussão deste trabalho experimental, época em se imaginou que este procedimento entraria rapidamente para o ensaio clínico, foi apenas em 1990 que Scharp e cols. reportaram ter obtido a insulino-independência em um paciente portador de DM1 pelo prazo de um mês (1). As grandes dificuldades técnicas envolvidas no processo laboratorial de isolamento das ilhotas impediram que este experimento fosse replicado em grande escala. Durante a década seguinte, cerca de 450 tentativas de realizar o Tx de ilhotas foram feitas, com índice de sucesso em obter a insulino-independência, pelo prazo mínimo de um mês, de apenas 8% em pacientes com DM1. Resultados de até 50% de sucesso foram reportados, quando os pacientes tinham-se tornado diabéticos por terem sido submetidos à pancreatectomia.
No ano de 2000, Shapiro e cols. (3) publicaram dados de uma série de Tx de ilhotas em sete pacientes consecutivos em que todos alcançaram a insulino-independência, pelo período de seguimento de um ano, utilizando um protocolo modificado que viria a ser conhecido como o protocolo de Edmonton. As modificações propostas incluíam: a seleção de pacientes com a função renal preservada, o uso de um novo esquema de imunossupressão sem esteróides, o preparo das ilhotas sem a adição de proteínas xenogênicas e a realização de um implante de grande número de ilhotas, ou seja, de no mínimo, 10.000 IEQs/kg do receptor, obtidas de dois a três pâncreas e implantadas em duas infusões. Desde então, mais de 500 Tx de ilhotas foram realizados em centros de todo o mundo utilizando o protocolo de Edmonton ou versões modificadas desse procedimento.
Apesar do progresso no desenvolvimento do Tx de ilhotas, a necessidade de imunossupressão por toda a vida, a escassez e as dificuldades de acesso ao pâncreas de doadores falecidos, as dificuldades técnicas e o custo do isolamento das ilhotas, além da pouca durabilidade da insulinoindependência, representam obstáculos que restringem a sua utilização a pequeno grupo de pacientes cujo diabetes é marcado pela hiperlabilidade. Para estes pacientes o Tx de ilhotas tem mostrado ser uma intervenção benéfica que apresenta morbidade 20 vezes menor que o transplante de pâncreas, dado que é procedimento muito menos invasivo do ponto de vista cirúrgico (4).
O PROCEDIMENTO DO TRANSPLANTE DE ILHOTAS
As ilhotas são implantadas no fígado por meio de uma infusão na veia porta (esquema do procedimento na Figura 1). O acesso ao sistema venoso portal se faz através de cateterização transcutânea dirigida por ultra-sonografia; este método tem sido preferido em vez da cateterização de veia mesentérica realizada por microlaparotomia (Figura 2). As ilhotas acondicionadas em uma bolsa estéril siliconizada estão suspensas em aproximadamente 250 mL de meio de cultura de células modificado (meio de transplante) contendo heparina (Figura 3). A infusão leva de 20 a 40 minutos para ser completada. Durante este período a pressão venosa portal é monitorizada e o procedimento deve ser interrompido se a pressão portal ultrapassar 20 mm de água ou atingir o dobro do valor basal. A escolha do fígado como local do implante é decorrente da capacidade elástica deste órgão em acomodar o volume da infusão, do fato que a insulina ser fisiologicamente secretada no sangue portal e do sucesso clínico alcançado com este sítio de implante (5-7).
O sítio pancreático original é menos acessível cirurgicamente e as tentativas de infundir as ilhotas na veia esplênica foram acompanhadas de maior morbidade. No entanto, deve-se considerar que o fígado apresenta limitações importantes em relação à disponibilidade de oxigênio, uma vez que a pressão parcial de O2 (PO2) nas pequenas veias portais varia de 8 a 10 mmHg enquanto no pâncreas a PO2 é de 40 mmHg. (8). Além disso, o fígado representa um ambiente celular marcado pela hiperglicemia, pela exposição às toxinas de origem intestinal e a elevadas concentrações dos imunossupressores nos períodos em que ocorre a sua absorção intestinal, amplificando o efeito tóxico sobre as ilhotas ali implantadas. Por tudo isso, ultimamente, tem-se questionado se outros locais de implante como a serosa duodenal não seriam mais adequados à sobrevivência das ilhotas (9).
Apesar de relativamente pouco invasivo, o procedimento do Tx de ilhotas pode causar eventos adversos, os mais frequentes estão relacionados na Tabela 1. As alterações das transaminases são transitórias e denotam o processo inflamatório associado à presença das ilhotas no parênquima hepático antes do processo de nidação. O sangramento é um risco inerente à punção hepática e ocorre em menos de 5% das punções, enquanto a ocorrência de trombose de ramos da veia porta se tornou um evento raro após o abandono da seringa e a adoção da infusão lenta das ilhotas contidas em bolsa siliconizada.
O ACOMPANHAMENTO CLÍNICO DO PACIENTE TRANSPLANTADO
Após o implante, a terapia com insulina deve ser mantida (usualmente com dois terços da dose anterior) para evitar a hiperglicemia (jejum >110 mg% e pós-prandial de 2 horas >180 mg%), que pode dessensibilizar as ilhotas em relação à secreção de insulina induzida por glicose e também prejudicar a nidação das ilhotas. Com a vascularização das ilhotas e o início da secreção de insulina, a dose necessita ser diminuída gradualmente até a suspensão total por período que varia de 2 a 11 meses nos casos em que a insulino-independência for atingida (11-13).
O melhor parâmetro para acompanhar a evolução é a dosagem do peptídeo C, que em geral é indetectável antes do implante, e que se correlaciona diretamente com a massa de células-beta que efetivamente conseguiu se implantar no fígado e inversamente com a necessidade de insulina. O peptídeo C pode superestimar a massa celular quando há resistência à insulina ou diminuição da função renal e subestimá-la quando sua concentração diminui devido ao uso da insulina exógena o que, por efeito de feedback, inibe a secreção endógena de insulina (4,15-16).
Testes funcionais como a secreção de insulina estimulada por arginina, o teste de tolerância à glicose oral ou endovenosa são realizados periodicamente. Como a resposta varia de acordo com o tempo decorrido desde o transplante, é importante que este tempo seja considerado para efeito comparativo. A resposta ao estímulo é verificável após um mês do implante, mas os centros transplantadores consideram a resposta como máxima aquela obtida após um ano. Do ponto de vista clínico, o controle das glicemias, da A1c, do peptídeo C, o registro dos eventos de hipoglicemia e da necessidade de insulina são suficientes para o acompanhamento (17-20).
A IMUNOSSUPRESSÃO NO TRANSPLANTE DE ILHOTAS
A imunossupressão recomendada pelo protocolo de Edmonton consiste em daclizumabe, sirolimo e tacrolimo, sem o uso de corticóides. O daclizumabe (anticorpo monoclonal anti-CD25) é administrado por via endovenosa na dose de 1 mg/kg no dia do implante e em mais 4 aplicações, a cada 2 semanas, após cada infusão. O sirolimo é dado por via oral, uma vez ao dia, na dose necessária para manter o nível sérico na faixa de 12 a 15 ng/mL, durante os primeiros 3 meses; posteriormente, a dose é ajustada para manter níveis entre 7 a 12 ng/mL. A dose inicial administrada de sirolimo é de 0,2 mg/kg, a dose subseqüente é de 0,1 mg/kg, que será depois ajustada semanal ou quinzenalmente até que as concentrações séricas desejadas sejam atingidas. O tacrolimo é administrado na dose inicial de 1 a 2 mg/dia, depois é ajustada para manter a concentração sérica de 3 a 6 ng/mL. A terapia imunossupressora é mantida por toda a vida. Desse modo, é importante considerar os efeitos colaterais dos imunossupressores. A Tabela 2 relaciona os efeitos colaterais mais freqüentes da terapia imunossupressora.
Além dos eventos adversos relacionados à imunossupressão utilizada no protocolo de Edmonton devemos considerar o achado recente do seu efeito antiproliferativo e diabetogênico, tanto por seu efeito inibidor da secreção de insulina quanto por induzir resistência à ação deste hormônio (6,11,21).
A associação do sirolimo com o tacrolimo frequentemente se agrega à linfocitopenia, o que desencadeia resposta homeostática proliferativa de linfócitos de memória, potencialmente capazes de recrudescer a resposta autoimune dirigida contra as ilhotas. Por esse motivo vários protocolos de imunossupressão alternativos estão atualmente em ensaio clínico (22).
RESULTADOS DO TRANSPLANTE DE ILHOTAS
Decorridos sete anos da publicação de J. Lakey e cols. (protocolo de Edmonton), o Tx de ilhotas seguindo este protocolo ou suas variantes, foi realizado em mais de 500 pacientes de 53 centros, incluindo o Núcleo de Terapia Celular e Molecular (Nucel), permitindo uma reavaliação crítica dos progressos e dos desafios que o Tx de ilhotas pancreáticas humanas ainda deve superar para migrar do campo da pesquisa clínica para o da terapia estabelecida.
A taxa de sucesso, medida pela insulino-independência em um ano, obtida nos três centros com maior experiência na América do Norte (Edmonton, Miami e Minneápolis) com a infusão de ilhotas obtidas de 1 a 4 pâncreas é de 82% (nos demais centros varia de 0% a 63%) e em todos se observa perda progressiva da insulino-independência. Três anos após o transplante, 50% dos pacientes permanecem livres de insulina e após cinco anos, apenas 13% dos pacientes não necessitam de insulina para controlar a sua glicemia. No entanto, o peptídeo C continua detectável em 80% dos pacientes e esta secreção residual da insulina traz o benefício da melhora ou o desaparecimento da labilidade (Figura 4), uma grande redução dos eventos hipoglicêmicos e da manutenção de uma A1c dentro das metas recomendadas(4,10,23-25).
Estes resultados mostram que o Tx de ilhotas, da forma como é realizado hoje, não deve ser considerado, para a maioria dos pacientes, como um método capaz de reverter o diabetes. No entanto, mesmo necessitando de insulina, a resolução das condições que levaram à indicação do Tx de ilhotas também pode ser considerada uma forma de sucesso.
Ryan e cols. (26) quantificaram os resultados medindo a evolução dos parâmetros HYPO e LI e desenvolveram uma medida da função das ilhotas transplantadas na forma de um beta-escore. Este é um índice que leva em consideração a glicemia de jejum, a necessidade de insulina, a hemoglobina glicada e a capacidade de produzir insulina quantificada pelo peptídeo C. O escore máximo de 8 significa a reversão completa do quadro de diabetes com insulino-independência, o escore mínimo de zero significa a falência total do enxerto (Tabela 3).
EFEITOS NO LONGO PRAZO DO TRANSPLANTE DE ILHOTAS
O efeito protetor do Tx de ilhotas em relação às complicações microvasculares resta ser demonstrado; em relação às macrovasculares, o estudo retrospectivo de Fiorina e cols. revela melhora da função endotelial e cardiovascular em pacientes que receberam também um transplante renal (11,27).
O seguimento no longo prazo de pacientes submetidos ao Tx de ilhotas permitiu que se identificassem efeitos colaterais que ocorrem mais tardiamente, como o desenvolvimento de focos de esteatose hepática, provavelmente decorrente do ambiente de hiperinsulinismo exacerbado em torno das áreas onde as ilhotas se implantaram. Embora sem grande expressão clínica detectada até o momento, a esteatose poderia ser um fator de lesão das ilhotas por lipoglucotoxicidade. A esteatose também ocorre em modelos experimentais e nestes é evitada por ação da leptina ou por restrição calórica (9).
Além disso, verificou-se o aparecimento de sensibilização contra antígenos HLA do doador, o que no caso de múltiplas infusões de diferentes doadores poderia levar a quadro de hipersensibilização capaz de dificultar a seleção de possível doador para outro transplante (renal). Por outro lado, tem-se notado que a tolerância da função renal em relação à ação nefrotóxica dos imunossupressores é menor em pacientes que tem clearance de creatinina prétransplante menor do que 70 ou 80 mL/min. Embora haja certa controvérsia dado o fato de que seja difícil excluir a progressão da nefropatia diabética em pacientes que de início já apresentavam declínio da função renal, a prudência impõe que sejam selecionados pacientes com função renal normal e, portanto com uma probabilidade menor de evolui para insuficiência renal, terminal quando forem submetidos à imunossupressão (28).
MECANISMOS DE PERDA DA MASSA CELULAR IMPLANTADA
Embora a rejeição e a recorrência da autoimunidade possam, como passar do tempo, causar a destruição das ilhotas implantadas, há evidências de que a maior parte das ilhotas é destruída no período imediato ao implante, por mecanismo decorrente da imunidade inata. Estima-se que de 50% a 70% das ilhotas infundidas são perdidas por apoptose "induzida por estresse" ou pela Instant Blood-Mediated Inflammatory Response (IBMIR). Este processo foi estudado em detalhe por Korsgren e cols. (29) que demonstraram que as ilhotas humanas produzem grande quantidade de fator tecidual que causa adesão e ativação das plaquetas, provocando a ativação das cascatas do complemento e da coagulação, e atraindo granulócitos e monócitos que infiltram e destroem as ilhotas. Esta reação também pode ser precipitada pela secreção de quimiocinas, como a proteína químio-atratora de monócitos 1 (MCP-1). Qualquer que seja o agente iniciador da reação, a lesão das ilhotas, inevitavelmente, provoca a liberação de antígenos insulares que podem reativar a resposta imune específica, resultando no aumento ou no reaparecimento de autoanticorpos como o anti-GAD (29-37).
Além disso, há a perda, ao longo do tempo, da massa celular transplantada, uma vez que a taxa de regeneração das ilhotas implantadas no fígado é muito pequena ou inexistente. Há evidências de que no pâncreas normal formamse cerca de 250 mil ilhotas/ano e que esta reposição seria necessária para sustentar a tolerância à glicose normal ao longo da vida adulta. Dados experimentais mostraram que primatas submetidos à autotransplante de ilhotas por infusão portal, que se tornaram insulino-independentes, perderam essa condição quando ganharam massa corpórea pelo crescimento, demonstrando a incapacidade de multiplicação adaptativa das ilhotas implantadas no fígado (29-37).
Certamente, outros fatores como a atividade antiproliferativa dos imunossupressores, a autoimunidade, a rejeição crônica e o ambiente hepático podem ser também em parte responsáveis pela perda da insulino-independência, não obstante o grande número de ilhotas implantadas (mais de 12 mil equivalentes de ilhotas [IEQ]/kg de peso do receptor).
Infelizmente, a nossa capacidade de detectar a rejeição das ilhotas é limitada. Os pacientes são monitorados por meio dos níveis de peptídeo C, da dose de insulina necessária e da glicemia. Todos estes parâmetros podem permanecer inalterados em uma fase precoce do processo de rejeição que, eventualmente, poderia ser contido por um ajuste da terapia imunossupressora se detectado a tempo (38,39). A dosagem do antígeno GAD65 não se revelou superior ao teste de tolerância à glicose simplificado. Tampouco há um método de imagem disponível que possa ser utilizado rotineiramente. Exames de imagem como a ressonância nuclear magnética usando lantanídeos, magnésio ou nanopartículas superparamagnéticas de óxido de ferro, estão em desenvolvimento, assim como exames de tomografia de emissão de prótons (PET) utilizando anticorpos específicos contra antígenos da célula-beta ou análogos do gliburide (39-40).
Os métodos histológicos (biópsias), ao contrário do que ocorre com os transplantes de órgãos sólidos não são habitualmente utilizados em razão da dificuldade de se obter uma amostra representativa contendo ilhotas por meio de biópsia hepática por punção (38,39).
PERSPECTIVAS FUTURAS DO TRANSPLANTE DE ILHOTAS
O Tx de ilhotas foi aprovado como tratamento no Canadá e está em fase de aprovação pelo Foods and Drugs Administration (FDA), nos Estados Unidos. Mesmo que se aperfeiçoem os métodos de isolamento e se mantenham estritamente os critérios de inclusão, ainda assim haverá enorme discrepância entre a demanda e a oferta de pâncreas. O futuro de qualquer modalidade de terapia de reposição celular para o diabetes dependerá da criação de uma fonte sustentável de tecido secretor de insulina. Enquanto isso não ocorre, a estratégia é aperfeiçoar o procedimento, tentando-se obter a insulino-independência utilizando pâncreas de um único doador. Hering e cols. reportaram ter obtido a insulino-independência em oito pacientes que receberam uma única infusão contendo 7.271 IEQs/kg, em média, e que destes, cinco pacientes se mantinham livres de insulina mais de um ano após o transplante. As técnicas aprimoradas de isolamento, o uso de antioxidantes e uma variante do protocolo de imunossupressão são os fatores aos quais os autores atribuíram este bom resultado (11,41,42).
Outra estratégia que está sendo explorada é o transplante com doador vivo. Embora a reserva de células-beta e a capacidade regenerativa do pâncreas não sejam bem conhecidas, sabe-se que pacientes que se submetem à hemipancreatectomia distal são capazes de manter homeostase da glicose normal após a cirurgia. Alguns centros têm se utilizado de doadores vivos para realizar transplante de tecido pancreático apesar do risco de diabetes e de complicações cirúrgicas no doador. Do mesmo modo, estes doadores poderiam ser utilizados para o Tx de ilhotas. A primeira tentativa de realizar este procedimento foi feita por Sutherland e cols. 25 anos antes da introdução do método semi-automático de isolamento. Em 2005, este procedimento foi realizado com sucesso pela primeira vez, em Kyoto, quando um paciente portador de pancreatite crônica recebeu 408.144 IEQs isolados de segmento pancreático proveniente de um doador vivo relacionado, atingindo a insulino-independência 22 dias depois (43-44).
Ao lado de estratégias que aumentem a oferta de ilhotas, é necessário melhorar a eficácia e a tolerância dos imunossupressores. As modificações do protocolo de Edmonton que já estão sendo testadas em ensaios clínicos são: agentes que depletam linfócitos T como o alemtuzumabe, um anticorpo monoclonal anti-CD52 que bloqueia a ativação dos linfócitos T via a molécula CD45, e o anti-CD3 humanizado hOKT3δ1 (ALA-ALA) que foi utilizado com sucesso no protocolo de doador único da Universidade de Minnesota, por Hering e cols. Agentes bloqueadores dos receptores co-estimuladores dos linfócitos T, como o CTLA4 e o LEA29Y (belatacepte), que se ligam aos receptores CD80 e CD86 bloqueando a sua interação com o receptor co-estimulador CD28 e modulando a resposta imune (45-47).
Uma abordagem alternativa é inibir a migração dos linfócitos do sítio de ativação até o local onde irão agir. Esta migração depende da ação de quimiocinas, e agentes que inibem o trânsito dos linfócitos têm sido usados de modo crescente como agentes imunomoduladores. O FTY 720 é um inibidor inespecífico da migração dos linfócitos a partir do timo e dos gânglios, e tem sido usado em associação com o basiliximabe e o everolimo em modelos pré-clínicos de Tx de ilhotas. Além disso, vários ensaios têm buscado induzir a imunotolerância pela adição de tecido imunocompetente do doador para induzir o microquimerismo (48-53).
Paralelamente ao crescimento exponencial das alternativas de imunossupressão e de indução da imunotolerância, surgem as estratégias de imunoisolamento que buscam colocar as ilhotas em compartimentos a salvo do alcance das células imunocompetentes do receptor. Há ensaios em curso com macroencapsulamento e implante das ilhotas no tecido subcutâneo e ensaios pré-clínicos com ilhotas implantadas em microcápsulas. Além da padronização dos materiais utilizados e do uso em animais de médio/grande porte, as questões conceituais que necessitam ser esclarecidas se referem à longevidade e à duração das ilhotas encapsuladas, à permeabilidade ao oxigênio e aos mediadores inflamatórios e a resposta imune no longo prazo em relação ao material das cápsulas (54-56).
Mesmo que todas as questões relativas à imunossupressão venham a ser resolvidas, a demanda potencial por este procedimento não pode ser satisfeita apenas por ilhotas obtidas a partir de órgãos doados. O xenotransplante não está no horizonte clínico previsível para os próximos dez anos, em razão dos problemas ainda não resolvidos da rejeição hiperaguda, da presença de genomas virais, além das questões éticas envolvidas (57). Células-tronco ou progenitoras capazes de se diferenciar em células-beta potencialmente podem fornecer uma fonte ilimitada de células para a terapia de reposição. Há relatos iniciais da obtenção de células produtoras de insulina, a partir de células-tronco embrionárias, bem como a descrição de células multipotentes obtidas de ilhotas que in vitro se diferenciaram em células exócrinas, endócrinas e hepatócitas. Outra fonte potencial são as células multipotentes originárias da medula óssea, capazes de se diferenciar em hepatócitos que pertencem à mesma linhagem endodérmica que as células endócrinas das ilhotas (58-60).
CONCLUSÕES
O Tx de ilhotas representa a fronteira na inovação tecnológica para o tratamento de um grupo específico de pacientes portadores de DM1. É um procedimento terapêutico aprovado no Canadá, em fase de aprovação nos Estados Unidos e experimental nos demais países, incluindo o Brasil. Atualmente, este procedimento não deve ser encarado como modo seguro de atingir a insulino-independência, porque, após cinco anos de seguimento, apenas pequena parcela dos pacientes se mantém livre de insulina, embora a grande maioria dos pacientes se beneficie do desaparecimento da hiperlabilidade. Com o desenvolvimento de novas técnicas de preparação das ilhotas e da imunossupressão dos pacientes, será possível atingir a insulino-independência com a infusão de massa celular menor e o Tx de ilhotas poderá oferecer a mesma eficácia clínica que o transplante de pâncreas, se não com menor custo com menor morbidade. Assim como o sucesso do transplante de pâncreas criou a motivação e a oportunidade para que o Tx de ilhotas se desenvolvesse, esta nova modalidade criará a oportunidade e a motivação para o desenvolvimento do transplante, utilizando células provenientes de fontes alternativas como as células-tronco diferenciadas no laboratório, e estimulará o desenvolvimento de técnicas de indução da imunotolerância e de imunoisolamento, porque este é o caminho para tornar a terapia de reposição celular aplicável a uma população maior de pacientes (11,54,61,62).